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“O grande acontecimento durante o Édipo feminino é a decepção que a menina sente

ao constatar a falta do falo que ela acreditava ter sido dotada. Esse sentimento de

decepção, assumirá a forma acabada do afeto de inveja. Inveja ciumenta do pênis,(

...)”

Na faculdade vim a estudar Freud. Ao ler trecho acima, no livro “O prazer de ler

Freud”, de J.D. Nasio, lembrei desse fato da minha infância.

Tinha um amigo que se chamava Chico, um nissei que morava perto de casa.

Brincávamos todos os dias, mas nos jogos, nas brigas, corridas, era sempre ele

campeão. Eu ficava realmente triste com a minha condição de perdedora. Ele dizia

para eu me acostumar, essa seria minha sina por ter nascido mulher.

Eu não me conformava com essa sentença, estava certa de que alguma coisa iria

mudar. Então, comecei a acreditar que quando fizesse sete anos, iria acordar menino.

Teria um pinto, seria forte e invencível. Avisei ao Chico que se cuidasse, que chegaria

o dia em que ele seria o perdedor.

Nunca tive dúvida de que essa injustiça seria revista e que Deus me faria menino aos

sete anos.

Chegou então o doze de julho em que minha vida mudaria. Abri os olhinhos cheios

de alegria. Efêmera alegria. Logo constatei que em vez de um pinto, ainda estava lá a

minha xoxota. Continuava a ser uma frágil garota. Chorei, chorei muito, seria então

essa a minha sina: estar sempre alguns passos atrás de um homem.

Nunca mais quis ver o Chico.

A minha brincadeira favorita e de meus coleguinhas no maternal era um jogo que nós

mesmos inventamos. Chamava-se Pega-beijo. Os meninos corriam atrás das meninas,

se alcançassem uma delas, essa deveria dar-lhes um beijos fugaz na boca. Selinho, era

o nome desse beijo.

Um dia, eu corria apelo parque, mas nenhum menino corria atrás de mim. Quando

passou por mim, assustada e rápida, a Camilinha. Era a queridinha da turma e filha da

diretora, a temida Tia Lídia. Atrás dela, vinham o Bruno e o Rafael, os meninos mais

bonitos da turma. Nem repararam em mim; eu, que parada, era uma presa tão fácil.

Segui-os e vi quando, detrás da casa de bonecas, cercaram a Camilinha. Ela teria

que beijá-los. Fiquei indignada: os meninos mais bonitos da turma querendo uma

única menina e ninguém atrás de mim? À medida que os meninos de aproximavam

do beijo, a indignação fora se transformando no mais profundo sentimento de

rejeição. Não sofreria aquilo sem lutar pelos meus direitos. Antes que a beijassem,

disse:

- A tia Marilda quer falar com você e com você – disse apontando para os dois

bonitinhos.

- Mentira!

- Ah é? Mentira? Então tá. Ela tá muito brava, depois não diz que eu não avisei.

Eles pensaram por um minuto naquela chantagem. O Rafael concluiu:

- Se for mentira, a gente vai bater em você.

Soltaram a Camilinha e foram procurar a Tia Marilda. A menina me agradeceu toda

aliviada - a boba tinha certeza que eu fizera aquilo por ela! – e partiu.

Fiquei ali parada, esperando a minha sentença.

Logo eles voltaram. Estavam raivosos, me bateram sem dó. Não reclamei. Apesar

da dor, agora era notada.

Meu joelho sangrando era a prova de que agora era mais deles do que qualquer

Camilinha.

Ir ao supermercado com meu pai era o meu programa predileto. Assim que

entravamos no carro, ele acendia um cigarro e começava dirigir em alta velocidade. O

cheiro da fumaça misturada com o vento entrando pela janela era a confirmação de

agora eu era a sua esposinha e estávamos indo ao supermercado cumprir nossas

obrigações domésticas.

Um dia, me distraí na sessão de biscoitos. Quando dei por mim, meu querido

paizinho havia desaparecido. Desesperada, saí a procurá-lo por aqueles enormes

corredores. Quando o achei na seção de carnes, meus olhos trasbordantes viram a

figura de um bom homem de costas, compenetrado na difícil tarefa de achar a melhor

carne para alimentar sua esposinha e o resto da família.

Saí correndo e abracei meu papai. Deitei meu rosto em seu bumbum, como sempre

fazia, e disse, “Papai, te amo tanto” Estava dominada pelo maior amor do mundo.

Aquele homem, assim como naquele dia, nunca sumiria de mim. Sempre estaria em

algum lugar me esperando e eu sempre sairia correndo e diria “te amo tanto”. Assim,

seria sempre feliz, estaria sempre protegida.

Quando ele se virou e vi seu rosto, fiquei horrorizada. Não era papai que eu

abraçava. Era um homem qualquer. Um homem que ria de mim. Pude confundir o

papai, isso não fazia sentido. Papai é inconfundível! É único, é o meu pai e eu, sua

esposinha.

Voltei para casa muda. Nada de biscoitos nem tagarelices. Alguma coisa tentava

fazer sentido naquela cabecinha.

Então, qualquer homem do mundo que esteja em uma seção de supermercado, eu

poderia abraçar e dizer “te amo tanto”? E nesse abraço, sentir coisas que só sentira

abraçando papai? Qualquer homem poderia me fazer sentir protegida?

Coitado! Será que o papai sabe disso?

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